Eu gosto muito de ver você indo embora

Quando andávamos de carro, ouvindo aquele cd, você pulava a música mais famosa, acho que estava enjoado. Engraçado, é a canção que mais me lembra você. Daquela banda moderninha que diz algo como: “vou me levantar hoje de noite e escolher alguém para amar, esse alguém será tão especial, será você”. Deixando para trás as semelhanças físicas com o vocal da bandinha, a música... Ouvindo hoje no banho lembrei.
Perto dos quarenta, você, talvez quase oitenta. Eu ainda tinha, deixe-me pensar, oscilava, entre a idade mental e física. Em algumas vezes, tinha quinze, noutras quarenta e dois. Variava entre o que o meu corpo queria e o que a minha razão podia te dar. Gargalhávamos muito do non sense nos filmes que assistíamos, era a comédia da nossa própria vida privada. Acho que tínhamos pontos de vista em comum. Fugiam do comum. Falávamos por canções. Me mostravas as tuas, eu as minhas. Em um presente singelo, te mostrei que não era um muro intransponível. Por um momento pude mostrar-me sensível. Vivenciar trocas. Agüentar expectativas. Era apenas um cd.
Eu te vi de longe. Andei observando. Gostei de brincar. Mas não me deixei levar. Você me fazia perguntas engraçadas, me fazia rir e me olhava dormir. Quando eu acordava, já estava lá, pronto, de olhos abertos a me mirar. Acho que me achava bonita. Eu te achava incrivelmente lindo. Não apenas eu. Agora que não partilhamos mais o mesmo lençol, digo sem medo, a concorrência era desleal. O assédio, bem o sabias, aprazia-me muito pouco. Era lenha na fogueira para contar mais anos em minha já avançada idade. Só fazia aumentar minhas rugas e rabugice. Instantaneamente eu passava de vinte anos para sessenta e quatro. O contrário poderia acontecer também. Uma crise de egocentrismo me dava super-poderes. Em dez segundos eu perdia o auto-controle, requisito básico da vida adulta, virava uma criança mimada de cinco anos, e achava que tinha o direito de interromper uma reunião de trabalho sua por uma crise de ciúmes. Altos e baixos. Esquecia do sutil. Ficava com o derradeiro.
E se nos apaixonarmos? Você vai largar a minha mão? Essa pergunta era feita em meio a um piscar de olhos. Veloz demais. Você sabia as minhas respostas. Eu tinha um projeto. Nunca abriria mão por ninguém. Nem por mim. Eu te amo, você dizia. Eu não acreditei. Apesar de ter te respondido a mesma coisa. Pessoas não amam em cinco minutos. Será? Nunca saberemos. Tudo de real que poderíamos ter foi interrompido pelo nosso afobamento. Queríamos viver algo que ainda não estava construído. Tudo bem. Poderíamos ter arriscado. Perdemos tempo com a burocratização do relacionamento. Antes mesmo de ele ter existido. Tentamos dar um nome para algo que nem mesmo havia sido criado, por nenhum dos dois.
Você está gostando daqui. Por isso não quer ir embora, não é? Foi o que você me perguntou, naquela noite fria. Chovia muito. Eu ainda lembro do seu cachecol xadrez. O beco em que nos encontrávamos tinha uma tonalidade quase cinza. Estávamos em pé, muito perto um do outro, embaixo de um toldo amarelo, tomando cuidado com os respingos da água. Era quase como se ainda tentássemos nos proteger. Ainda restava algo. A neblina que pairava confundia-se com aquela dos meus pensamentos. Você me olhou nos olhos, conseguiu transpor meu limite. Fez uma pergunta que nem eu estava preparada para responder a mim mesma. Não foi justo. Tive que manter minha pose. Ainda não estava pronta para deixá-la ir Sempre achei que não era orgulhosa. Vejo que, na verdade, passei grande parte da vida tendo uma espécie de orgulho bizarro. Uma máscara de proteção. Aproxime-se demais e verás surgir uma pessoa tão estranha que nem eu sei lidar com ela. Seres humanos são realmente imprevisíveis. I swapped my innocence for pride Crushed the end within my stride Said I'm strong now I know that I'm a leaver I love the sound of you walking away, you walking away…Hoje sou tão velha quanto você. Acredite, ou não.

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