Prazer em ser

Vamos trocar. De outra forma não é possível. Já andei bem triste, cabisbaixa até. Olhavam estranho. Corrige-me o Word: “Olhavam estranhoS”. Concordo. Olhavam-me estranhos. Torto. Passei grande parte de minha vida sentindo olhares. Fincados como lanças. Talvez hoje passem como brisa. Posso estar mentindo. Talvez não seja assim tão fácil. O percurso foi difícil. Caí inúmeras vezes. Propostas distintas para questões antigas. Não quero mais ser enraizada em mim mesma. Entendo o sentido na frase “tenho medo do mesmo” porque tenho mesmo. Antes apenas pensava que tinha. Era tudo na imaginação. Quando sai do mundo dos sonhos para o real foi que doeu. É sair de dentro de si. São camadas do mesmo eu. Desdobramentos infindáveis. Algo que você jamais pensou que talvez pudesse encontrar. O mais estranho é que toda essa mescla foi você o tempo inteiro. Criação para auto-sobreviência. Fortalezas construídas para proteção. Tenho uma casa. É minha. Tem um jardim. Converso com algumas pessoas. Que me dão as mãos. Já não preciso arrancar braços e pernas de ninguém, nem os meus. Nunca pensei que seria tão gigantemente assustador ver o meu universo privado encaixando-se no mundo. Entender que sentir medo é normal. Compreender que normalidade não existe. É apenas um conceito inventado pelo próprio homem. Se quiser ir mais fundo, analisando o caso com rigores científicos, faça uso de uma lupa. Quanta pompa! Nem precisa tanto, basta olhar no olho. Por muito tempo paralisei. Submersa, flutuando em uma espécie de líquido, que me englobava. Tive medo. De pegar na mão com força. De beijar de olho fechado. De abraçar apertado. De trocar substâncias corpóreas conectadas com o coração. De cambiar com alguém disponível. Existia uma pessoa dentro de mim que eu não conhecia, talvez conhecesse muito pouco. Acho que ela estava se formando. É aquela que hoje vejo nas fotos que tiram de mim e não reconheço. Pergunto: “Quem é aquela menina ali?” Me respondem: “É você!” Tenho que olhar de novo para acreditar. Analisar bem os detalhes da figura que me soa ainda estranha. É a menina que usa um casaco com estampa de oncinha, uma saia rodada de flores, um laço vermelho no cabelo curto e se acha bonita. Ela está se acostumando com o mal-estar de que nunca irá adaptar-se. Ser assim é uma escolha. A inquietude faz parte dela. Simplesmente não se acostumar. Acho que por isso as provas de múltipla escolha do colégio para ela sempre foram um transtorno. Acreditava em várias respostas. Os professores diziam que tinha que escolher uma. Não gostava disso. Sentia-se mal. Queriam que fosse perfeita. Ou talvez ela exigisse de si mesma a tal perfeição. Enfim, acabou acreditando na tal Perfeição. Em Uma resposta. Hoje entende que não existe Explicação. A vida acontece enquanto fazemos e acontecemos com ela. Muito podemos fazer. Mas não podemos fazer tudo. Muita teoria, que vivia no seu mundo imaginário, um dia bateu à sua porta. Foi assim, não pediu licença. Quando percebeu todos os Senhores Bigodudos dos livros haviam saído das suas respectivas tumbas e estavam respeitosamente tomando café da manhã com a Senhorita Intelectual. Tudo agora é real e faz parte de sua vida. Talvez por isso ela esteja em busca do Senhor Professor Universitário de Bigode. Acredita no que lê, no que vê, nas músicas que ouve, nos filmes que assiste, nas pessoas com quem vive, porque crê em si mesma. Entende o sentido da frase que leu na exposição do Cézanne: “O acabado é o prazer dos imbecis”. Pode sentir o que há muito tempo não sentia, prazer em ser ela mesma.

Comentários

luiza pannunzio disse…
Prazer em conhecer esta nova menina mulher que nasceu outro dia mesmo e eu vi... Com meus prórpios olhos ela nascer.

lp :)

Postagens mais visitadas