(In)compatibilidades

Era uma noite qualquer. Qualquer para você ou para mim, não para eles. Em um ambiente comum, como uma boate, onde as pessoas dançam, bebem, fumam, conversam, se olham... nada mais seria comum para aqueles dois.
Ela estava no andar de cima com as amigas. Usava um vestido rosa de bolinhas brancas, rodado, tomara-que-caia, que marcava a cintura. Era pequena e magra. Quando a vi lembrei-me daqueles comerciais de esposas felizes segurando sabão em pó dos anos cinqüenta. Nós pés, uma sapatilha de lantejoulas preta. Tinha brincos e um colar de pérolas, a maquiagem perfeita e um lacinho vermelho no cabelo ruivo encaracolado que descia até o meio das costas, uma franja lisa caía sobre os olhos castanhos, principalmente o direito, o que a deixava com um certo ar de mistério. Era linda.
Desceu as escadas a passos largos, sabia-se observada. Atrair tantos olhares não lhe agradava. Analisando-a de longe tive a impressão de que um personagem do romance Mulheres Perfeitas, de Ira Levin, saltava a meus olhos. Mas essa não era ela. Parou no bar e comprou uma água. Olhou ao redor e viu alguém. Seu coração bateu, não entendeu. Quis voltar, mas não conseguiu. Olhou para trás e fez menção de retornar. Deu meio passo, mas algo a fez ficar imóvel, olhando para o outro lado da sala, talvez fosse o Lou Reed, que rolava: “Hey babe, take a walk on the wild side” e porque não?
Ele era alto e magrelo, não particularmente bonito. Pretensioso, pensou, sem nem saber o porquê. Olhou primeiro para o seu pé: lá estava o All Star sujo que, provavelmente, um dia, foi branco. Vestia uma calça social preta, elas não tinham pregas, que bom, detestava pregas. Uma camiseta, que, da distância em que se encontrava, não conseguia distinguir muito bem o que dizia, e um blazer de veludo cotelê azul-marinho. Tinha o cabelo liso, castanho-escuro, estilo Beatles, uma boca grande e um nariz bem pequeno, talvez ficasse tão pequeno em comparação com o tamanho da armação dos óculos de grau, que eram enormes.
Ele não estava sozinho. Deve ser um idiota, pensou. Mas por qualquer razão decidiu ir ao banheiro. Nenhuma coincidência o fato de ele estar exatamente no caminho. Não, talvez fosse a música: “Living is easy with eyes closed, misunderstanding all you see It's getting hard to be someone but it all works out, it doesn't matter much to me” Sentiu-se um tanto quanto filosófica e aliviada, Beatles tinha esse poder sobre ela, e pensou: “Strawberry Fields forever”. Confiante seguiu seu caminho.
Ele a viu pela primeira vez. Ela pela segunda. Ambos gostaram do que encontraram. Até o instante fatal, instante no qual a magia da troca de olhares se transforma em palavras, tudo pode acontecer. Cada um pode ser o que quiser, ou quem quiser. Até esse momento não existem problemas ou confusões, é como se nada pudesse atrapalhar, é o súbito encontro no qual a relação ainda é totalmente visual. Certamente ela não dura mais do que alguns segundos, dependendo dos mais afoitos, ou alguns minutos, no caso dos mais pacientes. Talvez, no caso dos amores platônicos, dure uma vida.
Oi! Ele disse.
Oi! Ela respondeu.
Ele: Vamos fugir daqui?
Ela: Fugir? Não, obrigada, eu já me sinto livre o suficiente.
Ele olhou para o chão, ela olhou para o teto, sem dizerem mais uma palavra.
Seguiram cada um o seu caminho. Ela pensando: era realmente um idiota pretensioso! E ele pensando: as mulheres verdadeiramente não têm senso de humor! Cada um para o seu lado, sem terem nunca, realmente, se conhecido.

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