Transitando: 3 cantos da cidade, 3 contos - Sofia sente, e muito

“Vou colocar uma placa bem grande escrito: não trocamos guarda-chuvas molhados”. Eu a olhava, ela continuava justificando-se: “Você não sabe, cada coisa que me aparece aqui, sabe como é, guarda-chuva quebra”. Sim, eu sei. E as pessoas querem trocar os guarda-chuvas molhados? “Sim, e dizem que se eu não trocar vão chamar a polícia, ficam me fazendo ameaça, é cada um”. Imagino, cada um com seus problemas. Objeto frágil, o guarda-chuva, não tem longa durabilidade. “Se quiser, pode chamar a polícia, o meu negócio é honesto, pago todos os meus impostos”. Entendo, chato mesmo é escutar lamentação alheia.

Dia típico. Talvez nem tanto. Acordou, tomou café, saiu. Sabia que iria passar o dia inteiro fora, transitando. Carregava um cartaz laranja imenso: resultado de uma tarefa escolar. Foi em direção ao ponto de ônibus. Avistou sua condução vermelha. Entrou equilibrando-se entre o cartaz, casacos, pastas. Abriu a carteira, passou sua carteirinha e venceu a catraca. Sentou-se. Uma hora e meia. Apesar de cedo da manhã, não se sentia sonolenta, queria ler Virginia Woolf. O sono não era espantado pela boa leitura, mas pelo movimento frenético de sacolejamento do veículo: entendia perfeitamente a sensação de uma maçã sendo triturada dentro de um liquidificador ou de uma massa de bolo sendo batida dentro de uma batedeira. Olhava ao redor: todos pareciam não se importar com aquela agressão. Uns dormiam, outros riam, olhavam tranquilamente pela janela, conversavam, escutavam seus mp3. Total pasmaceira perante a vida sem amortecedores. Não causa espanto. Chegando ao meu destino, dirijo-me à porta traseira do ônibus para descer no ponto. Volto a tentar equilibrar meus objetos, enquanto seguro a minha saia, na altura quase do joelho, para não voar, quando escuto duas senhoras conversando: “Que menina indecente!” Isso causa espanto.

A pia estava cheia de louça da noite anterior. Ela acordou, não se sentindo muito bem. Existia dentro de si um vazio, misturava-se com algo que estava quase perto daquilo que bem sabe esteve buscando. Tudo isso era estranho, lhe gerava angústia. Dirigiu-se a cozinha. Como sempre, ligou o som: Is this it? Pois assim sabe, já tem as respostas, a resposta para esta pergunta ela conhece: é assim, sim. Não se importa em ouvir a mesma música, over and over again, se é conhecida e confortável, serve, foi assim que funcionou. Vestiu o avental, colocou o detergente na espoja e começou a fazer bolhas. Copo a copo, prato a prato. Pela espuma branca enxergava suas unhas vermelhas. Tudo ia se tornando liso e escorregadio, misturando-se em desagradáveis nãos e sinais de repetição. Sentiu seu peito apertar e seu ar faltar. Foi inevitável: lágrimas correram de seus olhos mesmo sem querer. Quanto mais tentava parar, mais elas lhe brotavam e confirmavam aquilo que não queria saber, mais dor ela sentia. Seus pés perdiam a força. A música ficava cada vez mais alta, e cada vez menos, ouvia coisa alguma. Eram os gritos de sua cabeça. Agarrou-se na torneira para não cair. Tudo parou: é assim, o mundo pára. Por segundos que viram minutos, minutos que viram horas, horas que viram dias. “Não vou conseguir me mover. Estou paralisada. Estou sozinha.” Quando algo voltou, cambaleou até o quarto e deitou, queria sonhar.

“Meu bem
Acostumei-me com o mal-estar
Como se este um bem fosse
Deixo que aos poucos entres
E me fazes bem
Porque te quero bem”

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