Nem sempre é possível olhar nos olhos - Sr. O. recebe notícias de Sofia (e continua de óculos escuros)

Tela em branco. Escreveu. Apagou. Escreveu. Apagou. Leu e releu. Queria mandar, não tinha coragem. Nesses últimos dias havia, ele lhe havia roubado muito mais do que ela suportou. Já não era ela. Se fosse antes, teria escrito e, sem pensar, enviado. Queria respostas. Saber por que não. Nunca saberia. Era assim: o comportamento silencioso. Ele havia, fazia muito, dado a sua sentença. Ela estava de mãos atadas, por mais que corressem soltas e livres, como nunca antes. Suas pernas podiam voar até onde ele se encontrava, geograficamente ela sabia, fisicamente desejava. Era racional: o peso paralisador, que aumentava sua dor. Apenas juntas as letras formam uma palavra: PARALISADOR; porque não paralisava dor alguma, antes a aumentava. A cada suspiro calado, a cada gesto travado.
“Não continue me humilhando desta forma, já não posso mais”. Repetia, para si, em voz alta. Quando percebeu que estava sozinha. E cada vez mais o amplo quarto se tornava menor, escuro, abafado. “Ar, preciso respirar”. Abriu a janela, para não enxergar nada além dos pensamentos que inebriavam o todo em que se havia transformado o seu ser pueril. Sabia, estava se desmanchando. Não havia uma resposta, uma certeza. Nada, além das inconstâncias que vinham de onde menos esperava. A única convicção que tinha era a de que estavam todas lá. Já não dormia, era inútil. Furtavam tudo aquilo que estava construindo, o que era seu, levavam embora, sem prévia ou posterior intenção de devolução. Mas não tinha importância. Ela não havia de querer migalhas. “Querem quebrar minha lógica”. Passava horas, dias, meses. Passou anos, foram anos. Dentro dela existiam túneis. De impossível acesso. Interditados.
Foram meses de conversas sem corpo. Monólogos. Zona de circulação livre da fantasia imaginária: ali não existiam complicações do mundo real. É um universo de formas exatas, estáticas. Retangular. Desenhado perfeitamente. Encantado. Nele habitam seres mágicos. Se a alegria não fazia parte, existia a esperança. E a roda continuava a girar. Brincava de se maquiar. Esperava, mesmo por aquilo que sabia que nunca teria. Aguardou, quebrando seus limites. Era o seu outro eu, por isso não tinha importância. “Está tudo dentro da sua cabeça”. Nevava, ventava, podia fazer sol, chover. Colocou um casaco, dirigiu-se ao terraço. Queria ar. Não encontrou. Desceu correndo as escadas do prédio. Para todos os transeuntes fez a mesma questão: “Por favor, onde posso encontrar ar?” Não lhe respondiam. Ninguém. Nenhuma pessoa. Um sobretudo preto, descalça, ela corria desesperadamente. Gritava alto. É que não sabia, mas seu grito era um chamado mudo, ecoava apenas em sua mente. Escutava tão alto que sentia seu corpo tremer. Seus pés paralisaram. Foi quando um carro veio em sua direção e buzinou, mas ela estava impedida de ouvir qualquer coisa que não fossem seus pensamentos. O impacto foi seco. Ela caiu. Estava com as mãos nos bolsos. Dentro do direito, dobrado três vezes, encontrava-se um papel com a sua letra, que dizia: “Antes de me olhar, por favor, me veja”. No anverso do bilhete, a seguinte inscrição: “A/C de Sr. O.: Aquele que nunca teve a nobreza de me olhar nos olhos".

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