Quando o sol vira cinza e o cinza vira sol

Ele é a calma, eu sou o furacão. Entrei em casa e a única coisa que vi era uma bagunça sem fim. Ele olhava e não via nada. “Preciso arrumar as coisas”, repetia para mim, para ele, para ninguém. Sinceramente, já não sei para quem falava aquelas palavras, se saíam em voz alta ou se estavam apenas em minha cabeça.

Quando o caos invade, você arruma tudo: gaveta da cozinha, armário do quarto, cômoda, pilha de revistas que se foram acumulando. Acumulando... como essa sensação estranha estancada dentro do peito, que não sobe, não desce, não anda. Penso em beber algo oleoso para ver se ela escorre e sai por algum lugar. O nojo não me permite, me faria vomitar. Então acumula dentro do peito um peso pesado que só de respirar, dói, e de olhar para os outros, anuncia.

A minha existência é uma denúncia: eu não sou normal. Respiro pelos poros errados. Os que deveriam estar abertos estão tapados. Pelos fechados borbulham substâncias estranhas. Busco ar pelos lugares indevidos. Não sei onde está a força para colocar pé ante pé, por isso, às vezes, eles não saem do lugar e ficam ali, parados. É quando entro numa encrenca. Tamanha. Maior do que eu. Agiganta-se. Dá-me medo. Faz com que tudo se embole. E eu preciso arrumar a casa.

Saí de casa e vi as pessoas reluzentes. Quando estou opaca, elas brilham. Têm uma cor bonita, enquanto eu sou verde-musgo. Não ando, rastejo. Algumas saltitam, outras galopam. É bonito de se ver. Posso até sorrir. Gosto da sensação de ser feliz pelos outros. Essa me atravessa, não provoca arrepios. É apenas passageira. Não nos comprometemos. Eu não dou, ela não tira.

Tirei todos os pratos, copos, travessas, potes de plástico, de vidro e todo o resto do armário da cozinha. Escancarei as portas e as gavetas. Durante trinta minutos admirei o vazio como se fosse uma obra de arte. Não havia nada ali dentro. Fui inundada por uma sensação de alívio e comecei a chorar, ali, sentada no chão frio. Não queria que o telefone tocasse, que alguém me chamasse, não queria ninguém.

Sonho com o silêncio. Esquecer de tudo o que passou e ser um armário vazio, para que possam me olhar assim, sem pensar em nada. Sem passado, sem futuro, sem expectativas. Sou o que posso dar agora. Sou o que fui, não sei o que serei, por isso sou presa ao passado. Não consigo deixá-lo ir. Atada como gêmea siamesa. Posso morrer se tentarem me separar. Pode sobrar nada. Ou posso ficar com seqüelas inimagináveis. Carrego algo que não sou eu, que não é meu e que não sei mais como deixar para trás.

Arrancam-me uma parte cada vez que tenho que ser outra. São as partes desse ser decrépito que me habita. O outro anda escondido debaixo deste, sufocado. Culpa o ar poluído de São Paulo por não conseguir respirar. Mas sabe que, no fundo, quem senta no seu peito é ela mesma. Deve ser um malabarismo e tanto sentar no próprio peito. Posso garantir que treinei largos anos.

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