Sofia vê o mundo mais bonito escutando o John

Vire-me do avesso e exponha todos os meus malditos defeitos bem no meio da minha testa. Andei tentando livrar-me deles por toda a minha vida de formas que jamais tentarei contá-los aqui, qualquer tipo de papel tornar-se-ia inutilmente pequeno. Transformo-me facilmente em porco-espinho e te furo qualquer doce tentativa de aproximação. Arranque de mim as minhas moléstias, de dentro deste peito aturdido não sairá nenhum afeto: assim o selei.
Na transposição, o transporte torna-se suave. Da maneira estranha de ser sempre saiu assim, um jeito meio atrevido. Funcionou como brincadeira de criança: um lençol branco com dois furos: vivi fantasma. Muitos me viam assustados; poucos me entediam e tinham coragem de me olhar nos olhos; raros admiraram. Atônitos, participaram de momentos de contentamento: “Vai entrar na lagoa, assim, sem calça?” Eram três horas da manhã. O movimento era escasso. Deixei a calça no carro e resolvi entrar na lagoa. “Nunca vi ninguém fazer uma coisa dessas. Suas pernas são lindas, ficam bem branquinhas na luz da lua.”
Acordo-me de outro imprevisto que me passou com calças, ou sem. Uns bons anos atrás, estava viajando pela Europa, decidi colocar uma saia. Minha amiga e eu estávamos no meio da rua, sentadas em um banco, com nossas malas. Havíamos saído de nosso albergue. Creio que contava dezesseis anos. Estava usando uma camiseta do Kurt Cobain, ele fazia o mundo mais bonito para mim naquele momento, ajudava-me a encontrar algum sentido, ou nenhum. Na falta de um reservado, resolvi fazer da rua o meu closet pessoal. “Tem certeza? Vai trocar aqui mesmo? Ficar só de calcinha no meio da rua?” Dessa vez era uma avenida movimentada. Fiz a troca ali mesmo. Sem muito me importar com os passantes. Para mim foi divertido.
A primeira vez que me apaixonei, passei mal quatro anos. Foi uma experiência da qual não guardo as melhores lembranças. Foi meu primeiro amor e meu primeiro beijo. O beijo foi na praia: a luz do luar, as ondas quebrando. Romântico e brega. Estava tão nervosa que, sem lhe dar muita explicação, tive que dizer que precisava passar em casa para buscar algo que esquecera. Na verdade, tive uma dor de barriga insuportável. Quando voltei, continuamos nosso passeio. Lembro-me de não ter a menor idéia do que estava fazendo, de ter achado tudo aquilo horrível: o gosto, ele me abraçando, a respiração era muito perto. Além disso, tudo tinha de ser feito de olhos fechados, pelo menos minhas amigas tinham me ensinado assim. Quando fui colocar em prática, sem querer, dei um beijo no nariz dele, achando que era a boca. Senti-me extremamente envergonhada, querendo sumir daquele lugar. Ele me fazia sentir patética.
Cem anos depois, estou tomando café com meu ex-eterno namorado. Dessa vez terminamos, para sempre. Eu tinha uma notícia para ele. Mal sabia que ele também tinha uma para mim. Fiquei um ano sem vê-lo. Ao abraçar aquele menino magrinho, chorei. E ouvi: “Não reconheci você! Conseguiu ficar mais magra do que eu!” Creio que nunca tive sentimentos tão diversos por uma pessoa. Vi alguém me dar valor antes mesmo de saber que eu tinha. É que naquele tempo eu ainda tentava me esconder no lençol de fantasma. Das vezes que você tentava tirar, eu corria para baixo, que nem uma menina assustada. Sempre gostei do seu mundo. De verdade, tive medo de compartilhar, não sabia as formas. Number 9 estava além das minhas habilidades. Eu ainda precisava do Iê-Iê-Iê. “Sabes que eu vou ser para sempre o mais importante”. Você me mostrou, no momento mais difícil que passamos, a força de gostar. Não pensava ser possível doar-me em um nível tão profundo. Nesses anos que passaram, brigamos um pouco. Lembro-me do nosso encontro em uma festa a fantasia. “Você não está fantasiada, está? Usa essas roupas coloridas e chamativas todos os dias!”. E depois me contou que o amigo lhe disse, assim que me viu chegar: “Ex-namorada quando chega estraga a festa do cara!”.
Sentados no café falamos muito, acho que falei mais, não parei de contar sobre tudo, meus projetos, minha vida. Um ano. Contamos que estávamos namorado. Foi estranho e engraçado. Demos muitas risadas. “Faz tempo?” Uns dois meses. “Eu também”. Coincidências. Senti uma alegria estranha.
Eu fui para uma cidade nova e voltei para a cidade em que morei a minha vida inteira. Nada aqui me parece mais tão feio ou assustador. Nem o caranguejo vermelho, que repousa preguiçosamente no chafariz, hoje em dia pintado em contrastantes tons de azul e verde. Talvez seja a certeza que tenho de que agora estou aqui de passagem, pois encontrei meu lugar. Em outro lugar. A pracinha me pareceu bonita. Em cores alegres. Elas vinham até mim, me tocavam e voltavam. Refletiam nostálgicas. Os brinquedos do parquinho são tão pequenos. Ou será que cresci?
Hoje, passeando na Lagoa, em tons bicolores, encarneirada, alguns diriam, o John torna o mundo mais bonito.

Comentários

Dismael Sagás disse…
Você mudou, a praça mudou.


Adorei o texto, parabéns!!
Disma
luiza pannunzio disse…
Sofia tem novos olhos.
Que enxergam mais coloridos.
E uma boca que pontua coisas
que os ouvidos de LP precisam ouvir.
Sentir.
Thanks!
:)

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